quinta-feira, 19 de março de 2009

Ser Batista


Escrito por JOSÉ CARLOS TORRES - Pastor, secretário executivo da Convenção Batista Carioca


Ninguém nasce cristão, ninguém nasce batista.

Ser cristão e ser batista resulta de decisões que devem ser muito bem pensadas, tomadas de forma autônoma e consciente, pois implicam em radicais compromissos de vida.

Nasci no que se costuma chamar de “um lar católico”. Católicos eram meus pais e todos os meus familiares. Uma família católica.

Quando decidi (veja, eu disse decidi, o que implica em opção autônoma) ser um cristão batista, a resistência e até oposição que encontrei foi grande. Pudera! O engajamento da família na Igreja Católica podia ser assim mostrado: um primo era reitor de um Seminário Maior no Nordeste, dois outros estavam estudando no Vaticano. Promovido a cônego, um primo tornou-se o pároco da Catedral Metropolitana de Maceió. As mulheres, em sua maior parte, participavam da organização chamada “Filhas de Maria”. Eu mesmo, já fora presidente da Cruzada Eucarística e até já havia ajudado na celebração de missas.

Foi na adolescência, vivendo uma crise existencial perturbadora, que me afastei do catolicismo e vivi um tempo sem quaisquer vínculos religiosos. O rompimento era fruto do meu questionamento dos conceitos e das formas de se pensar e de se praticar o cristianismo propostos pela Igreja Católica, apesar dos muitos valores positivos que, também reconheço, nela existem.

Havia certas coisas, no ser, no pensar e no fazer católicos que eu não conseguia aceitar e com o que não pude mais conviver.

Entre essas coisas que, entendia já, não se harmonizavam com os mais fundamentais princípios de uma religiosidade saudável, estavam: o institucionalismo que faz a organização prevalecer sobre o povo; a hierarquização que sufoca a criatividade que é um dom de Deus aos homens; o autoritarismo (sempre diabólico) que inibe a reflexão livre e autônoma, e degrada o ser humano destituído de poder institucional, além de ser um obstáculo intransponível à construção da unidade na diversidade.

E eu ainda tinha problemas com certas doutrinas, incoerentes, sem base bíblica e sem consistência conceitual, que vigoravam apenas pela força do autoritarismo de um “Magistério da Igreja” que não podia ser contestado e impunha suas posições à revelia da revelação bíblica. Isso tirava do crente a possibilidade de sua autonomia, transformando-o em seguidor passivo.

Andei assim por alguns anos: sem vínculos religiosos, muitas vezes incrédulo, construindo novas certezas em cima das dúvidas que levantava e, sempre, sempre buscando verdades centrais que dessem sentido à minha vida.

Durante essa caminhada, deparei-me com opções diversas, variando do ateísmo ao mergulho em expressões de religiosidade como o Islamismo e as várias religiões asiáticas. Nenhuma conseguiu cativar-me.

Na minha avaliação, nenhuma dessas opções me proporcionava o espaço adequado para viver o mais plenamente possível a minha individualidade (com as diferenças inevitáveis disso resultante) e a minha humanidade (oferecendo-me um ambiente espiritual e sócio-cultural em que, junto com outras pessoas, pudéssemos realizar-nos como comunidade humana).

Eu pensava, e continuo pensando, que se a religião não propiciar esses dois resultados – e os dois têm a ver com a salvação, o Reino de Deus e a vida abundante propostos por Cristo – ela se distancia dos propósitos divinos. E quanto mais se distancie, mais passará a constituir-se num instrumento de controle social, num instrumento do Estado, numa mera instituição da cultura prevalecente, numa ideologia sustentadora do status-quo.

Foi no meio dessas andanças que conheci a Igreja Batista. Minhas primeiras visitas à Igreja Batista do Farol, em Maceió, deram-se por motivos meramente sociais, para atender a convite de três amigos do Colégio Batista, um deles já falecido – o inesquecível irmão e amigo pr. Daniel Rocha Guimarães.

Confesso, a esta altura, que nas primeiras e espaçadas vezes em que freqüentava aquela igreja, eu o fazia tomado por uma grande dose de preconceito, apenas para atender aos meus amigos Daniel, Tereza e Timóteo. Até porque, se abandonara a expressão maior de cristianismo na sociedade brasileira, que outra, menos relevante social e culturalmente me atrairia?

Aos poucos, entretanto, algumas marcas diferenciadas do pensar, do ser e do fazer batista começaram a despertar a minha atenção para uma nova expressão do cristianismo pela qual fui sendo irresistivelmente atraído. Dentre estas marcas diferenciadoras que fui enxergando, destaco as seguintes:



1. O crente, individualmente, numa igreja batista, pode pensar livremente, tomar suas decisões autonomamente e assumir as conseqüências de suas opções. A autonomia do indivíduo é reconhecida como um princípio batista.

2. O crente, como conseqüência da sua autonomia (liberdade para pensar, sentir e agir por si próprio), tem o direito de discordar de qualquer dos seus líderes, e a responsabilidade de colocar o seu pensamento discordante como expressão da sua singularidade pessoal e do seu compromisso de ser fiel às suas verdades e de contribuir para o enriquecimento da vida comunitária da igreja.

3. A igreja, como comunidade local, também é autônoma em suas decisões e por elas responsável diante de si mesma, de Deus e do mundo. Governada de forma democrática, participativa e congregacional, não há poder externo que possa intervir numa igreja batista, com legitimidade, referentemente a questões religiosas.

4. Autônomas, as igrejas batistas não são independentes, ao menos enquanto partes de um mesmo povo que se define com base em uma história e princípios comuns, tendo como propósito maior a vivenciação de toda a boa, agradável e perfeita vontade de Deus, que se traduz na salvação de todos os perdidos e na santificação de todos os salvos.

Para tanto, elas estabelecem laços cooperativos umas com as outras, para que juntas possam fazer o que nenhuma, mesmo a que se pense mais poderosa, pode fazer isoladamente.

5. Autônomas e responsáveis, e tendo que dar respostas relevantes para os diferentes contextos em que se situam, as igrejas batistas, unidas pelos seus princípios, são necessariamente diferentes na forma como respondem às necessidades com que se defrontam.

Como conseqüência, a unidade que caracteriza as igrejas batistas não é a opaca, triste, ética e esteticamente pobre unidade na uniformidade. Pelo contrário, é a rica, alegre e bela unidade na diversidade, a única que se harmoniza com um Deus cujo Espírito, em sua multiforme graça, abençoa os crentes que a fazem com diferentes dons e diferentes ministérios.

6. A liderança, numa igreja batista, necessariamente deve traduzir-se em serviço. Os títulos não devem estabelecer posições de poder, mas apenas ministérios, isto é, serviços a serem prestados em nome de Deus aos crentes individualmente, à comunidade como um todo e ao mundo.

Pastores e líderes, não importando os seus cada vez mais pomposos e desnecessários títulos, se vêm o ministério ou os títulos que ostentam como fonte de poder, fator de diferenciação hierárquica ou meio de vantagens pessoais, estão não só gravemente equivocados, como também produzindo doenças, desilusões e frustrações no seio do povo ao qual deveriam somente servir, servir e servir.

O pr. José Guedes dos Santos era o pastor da Igreja Batista do Farol, quando me converti e fui batizado. Retratando-o da forma mais fiel, digo que ele era apenas um servidor daquela igreja, um facilitador para que ela expressasse as marcas acima citadas. Um servo, simplesmente um servo. Aí estava a fonte de sua autoridade. Autoridade que, com o compromisso de serviço e a consciência cristã que o caracterizam, jamais deixou resvalar para o autoritarismo.

Outras coisas mais fui vendo sobre o que significa ser batista. Encantado, conquistado, apaixonado pelo que via e pelas perspectivas que se abriam diante de mim, à luz dos diferenciais acima citados e de outros mais, decidi aceitar Cristo como meu Senhor e Salvador, bem como a Bíblia como minha regra final de fé e prática, tudo à luz dos princípios batistas.

Da decisão feita em 1965, nunca me arrependi. Tenho procurado ser fiel a ela, mesmo nos meus piores momentos. Se tivesse mil vezes que tomar a mesma decisão (como de fato o fazemos a cada dia), tantas vezes cristão batista me afirmaria.

Mais ainda agora, quando vivemos uma época fascinante de ruptura, cheia de graves problemas, mas maiormente grávida de desafios e oportunidades para proclamarmos de forma relevante a nossa fé em Cristo, para sermos instrumentos para a glorificação do seu nome no meio dos homens. Desafios e oportunidades para cuja superação, estou convicto, nenhum outro grupo religioso dispõe de um conjunto tão rico e apropriado de princípios como os batistas.

Não tenho a presunção de que os batistas somos a única igreja verdadeira, nem a ilusão de que somos os donos da verdade e de que as nossas práticas são sempre corretas e coerentes com os nossos princípios.

Desconfio até que experimentamos uma crise de razoável gravidade, exatamente em razão de algumas das nossas práticas, pelo fato facilmente visível de nos termos distanciado dos nossos princípios – aqueles diferenciais que definem o ser batista e fazem de nós um grupo singular entre os demais grupos cristãos.

Essas incoerências pragmáticas e suas conseqüências sistêmicas no pensar, nas atitudes e no agir batistas (especialmente em suas formas institucionais e hierarquizadas), como as expressões recorrentes de autoritarismo, de culto à personalidade, de etnocentrismo e de intolerância com as diferenças, eu as vejo como graves equívocos e problemas. Mas também os vejo como desafios que podem e devem ser enfrentados por mim, por qualquer outro batista e por todos que estejam deles conscientes, como parte da nossa responsabilidade cristã e sem receios de que haja instâncias ou instrumentos legítimos que nos possam cercear este direito incontestável.

Ser batista, propicia-me como cristão este espaço de liberdade que me permite ser coerente com as minhas verdades, mesmo que isso me custe também o preço de ficar aparentemente sozinho, como voz clamando no deserto. Mas não é esta uma das mais fascinantes facetas do assumir plenamente a nossa humanidade: o exercício pleno da nossa liberdade e das responsabilidades nela implícitas?

Tudo o que acima afirmei, e em função do como vejo a vida e como procuro vivê-la, torna crescente em mim a certeza de que fiz a melhor escolha quando me tornei batista. No espaço comunitário batista eu encontro, em tese, o ambiente espiritual, conceitual, social e cultural em que posso realizar-me como indivíduo, como parte da “nova humanidade em Cristo” e da humanidade mais próxima e global, com tudo que isso implica em liberdade e responsabilidade.

A consciência de ter feito a escolha irresistível, mais o valor que dou à vida que vivo como conseqüência, leva-me a afirmar, como um cântico que emana do mais recôndito do meu ser: eu não saberia viver, como ser humano, sem ser cristão; eu não saberia viver, como cristão, sem ser batista.

Fonte: O Jornal Batista

Nenhum comentário:

Postar um comentário